Mestre Pedreiro Valério Martins de Oliveira
Mestre Pedreiro Valério Martins de Oliveira
Advertências aos Modernos, que aprendem os Ofícios de Pedreiro e Carpinteiro
[...]
Emblema
Este Monarca supremo quis mostrar seu poderio, em a Real obra de Mafra fez símbolos de grão feitio: lembrava-lhe a grandeza da Religião Gentílica, e não podia sofrer, que esta virtude, ainda que moral, supersticiosa, e errada no culto, e reverência dos Ídolos, estivesse ainda hoje envergonhando a verdadeira Religião com a memória dos sumptuosos templos, que lhe levantava a ideia Gentílica. Formou com o pensamento da promessa aquele majestoso, e magnífico Templo dos Arrábidos, invocado Nossa Senhora, e Santo António. Venturoso Campo! Eras tão agreste, tão sólido, e a tantos séculos sem sombra de aventura! Hoje te vês todo fausto, todo cheio de glórias, de louvores, de Majestades, pois assiste a melhor do Mundo; e a da terra vos aclama, levantando este sumptuoso edifício com os melhores intentos, que os homens puderam alcançar. Chegou F[r]ederico àquele campo, sem sombras de edifícios, espalhando linhas, enterrando ouro, levantando pérolas, encastoando o diamante mais puro. Olhava para a Cidade de Babilónia, e via a Religião de Semiramis edificando um majestoso templo de Júpiter Belo, com oito Torres, que sobressaíam, e sucessivamente levantando, e desentranhando de uma só torre, que na oitava subia já a tão desmedida altura, que parecia tocar já com as estrelas, observada pela Matemática, e Astrologia Caldeia, e era quadrada, e tinha quatro estádios o vão de seu quadrado, que, pela conta de Plínio, fazem duzentos e cinquenta passos, que pela nossa conta são 625 palmos de comprido; eram adoradas nele os três simulacros de Júpiter, de Juno, e de Opis, fundidos todos de ouro, e o de Júpiter, como Rei de todos, e orago do Templo, era de quarenta pés de altura, que fazem 53 de palmo, e pesava mil talentos 3 Babilónios: de ouro era também uma mesa, a que estavam sentados todos três, e para o serviço dela, e o culto dos sacrifícios, havia diversos vasos, e turíbulos da mesma matéria, e pesavam muitos talentos, e toda esta opulência, grandeza, e majestade se fechava segura, e soberbamente com respeitadas portas de bronze.
Olhava para Sezico, Cidade antiga de Grécia, na qual estava outro famoso edifício, que todos os mármores, de que se formavam as suas paredes, estavam encaixilhados em molduras de ouro, que a presença da maravilha lavradas, e abertas maravilhosamente, entrava a luz pelas paredes, e o ar a alumiar, e a refrescar o Templo suavemente com candores, e os mais enternecidos raios de Apolo, que nele adorava a Gentilidade daquele tempo. Havia em Éfeso um Templo de Diana, feito pela melhor arquitectura, com gravíssima ideia de Xercifonte, acabado em duzentos e vinte anos pela Religião de Ásia, uma das sete maravilhas do Mundo.
Naquela majestosa Cidade de Arcádia o sumptuoso Templo de Minerva. No seu monte Cotílio o de Apolo, ambos de grande magnificência, de majestosa arquitectura, e de singular Geometria. Havia Tarquín[i]o em Roma tão soberbo, prodigiosa, e majestosamente Religioso, que nos fundamentos do seu Capitólio despendia a milhões pesos de prata, e desta sorte semeava Tarquín[i]o sumptuosos, e admiráveis Templos em toda a Cidade de Roma: à sua imitação havia Agripa levantando o seu famoso Panteão, dedicado a todos os Deuses, que depois adorou já toda a Roma Cristã, consagrado a todos os Santos pela Santidade de Bonifácio IV.
Cifra Encomiástica
Ó F[r]ederico Romano,
que andais por terras alheias,
só vós levantais ideias
à custa de um Soberano.
Volta
Executais um Baptista,
que domina os Escultores,
diante de cuja vista
são como imensas as flores.
Romance
Nesta ideia adormeci,
não sei se dentro da cama,
porque estava sem acordo
a ideia desacordada.
Eis que de repente chega
um mancebo, o qual mostrava
vestido de resplendores
nos reflexos da luz clara.
Supus vinha das Estrelas
O tal moço, que trajava
as claridades por moda,
os luzimentos por gala.
Consigo me leva, e logo
pelo modo, que mostrava,
soube, que era o Luminar
da luzida Esfera quarta.
Este me põe de repente
na Real obra de Mafra,
onde em colunas de mármore
me mostrou as de ouro, e prata.
Do cimento até ao tecto
admirei tão Régia Casa,
onde o ilustre da matéria
a obra sobrepujava.
Aqui luzia o Topázio,
ali brilhava a Esmeralda,
o Diamante, e a Safira,
tudo o ouro encastoava.
Ao Artífice Romano,
que ideou toda esta máquina,
se atribuem as perfeições
de obra tão boa, e preclara.
No meio deste artifício
um sólio se levantava
tão alto, que parecia
não ver-se o fim da distância.
Diante do sólio ardiam
mil vítimas, que abrasadas
mostravam louvor eterno
ao nome, que ali não estava.
Perguntei ao Vaticano,
quem tinha feito aquela Ara?
Quem perguntas? Eu to digo:
quem tu louvar intentavas.
F[r]ederico, que me despoja,
e que a coroa me arrebata,
esse, que as linhas me rouba,
e faz, que eu me torne em nada.
Tudo para si me usurpa
com acções tão acertadas,
que à violência do respeito
faço entrega voluntária.
Queres louvá-lo de Arquitecto?
Pois dize-lhe, (e isto basta)
que eu Vaticano me meto
por envergonhado em casa.
Dize-lhe, que à obra cedo
nas perfeições dessa Mafra,
e que daqui por diante
não farei coisa que valha.
Assim F[r]ederico, peço-vos
por vossa Estrela afamada,
que estimeis este Elogio,
que o Vaticano vos manda.
Tudo que nesta obra brilha,
se conhece por profundo,
maravilha deste Mundo,
e oitava maravilha.
Trovas
Peguemos pelas Escadas,
que se vêem feitas no Adro:
por baixo pegam em redondo,
e por cima em quadrado.
De ver tal entendimento
bem admirado estou,
que a cada sete degraus
um tabuleiro ficou.
Tem mais uma direcção,
que não pode estar melhor,
que guarnece esta entrada
pirâmides ao redor.
Passando dois tabuleiros,
que por todos achei três,
vi uma rica calçada,
feita de belo Xadrez.
Cheguei à frente arrogante,
que a todos faz admirar,
olhando do Céu à terra
vi muito para notar.
Na mesma vi cinco arcos
de quinze palmos de largo,
com dois postigos no meio,
um nicho de cada lado.
Em toda esta frontaria
do Norte ao Sul se vêem
dois tão bem feitos Palácios,
que ao longe parecem bem.
Os Palácios se guarnecem
do Norte, e também do Sul,
com duas Torres muito fortes,
que não têm defeito algum.
Sobre a primeira cimalha
cinco janelas vi estar,
e um nicho de cada lado
da janela principal.
Tem a pedra da janela,
que por meio está no alto,
trinta palmos de comprido,
e onze e meio de largo.
Debaixo dela vi seis
colunas com maravilhas,
onde a máquina das frentes
estão todas suspendidas.
Outras seis estão por cima
em aquela mesma prumada:
seis capitéis estrondosos
fazem soberba a fachada.
Mas entre estes capitéis,
em que já tenho falhado,
estão belos Serafins
em um formoso folhado.
Na mais obra não falemos,
nem na cimalha Real,
no que mais vai para cima,
é que é mais de admirar.
No ponto do frontispício
está uma flor muito bela;
um Anjo de cada lado,
cada um numa quartela.
Tem um óculo no meio
de quinze palmos de largo:
flores de uma, e de outra parte,
com elas bem adornado.
No óculo está Deus Menino
nos braços da Virgem Mãe;
aqui se vê adorado
de Santo António também.
No alto do frontispício
pirâmides vi estar:
eram duas, e ambas fogo
estavam sempre a deitar.
Em o remate da frente,
em que já tenho falado,
se vê uma Cruz Romana,
de ferro mui bem lavrado.
Com seu Calvário de pedra,
que está mui bem acabado,
tem um serafim no meio,
um quartão de cada lado.
Vi duas Torres muito fortes,
trezentos palmos de altura;
também contando achei
cinquenta de largura.
Quarenta e oito colunas
têm ambas as duas Torres:
e também em cada uma
dois formosos mostradores.
Em baixo aparecem oito,
e por cima dezasseis;
cada vez é mais miúda
a obra dos capitéis.
Estas colunas, que digo,
vinte e sete palmos têm;
e nove têm de redondo,
e três de grosso também.
Em o derradeiro banco,
que em cima se vê estar,
se vê o maior prodígio,
que os homens podem obrar.
Pois tem quatro Serafins
com mui grande direcção,
que as asas cobrem seu peito,
que belas no bronze estão.
Cada um dos Serafins
de flores tem um festão,
e também de cada lado
tem um vistoso quartão.
Neste mesmo banco vi
quatro colunas ovadas,
e outros quatro Serafins,
obras mui bem acabadas.
As cúpulas destas Torres
quatro pedras as fecharam;
e em cada uma delas
quatro óculos deixaram.
A maior parte da pedra,
que têm estas duas Torres,
tudo é obra de relevado,
feita por bons Escultores.
A outra parte de pedra
também está com maravilha,
pois se vê muito bem lavrada,
e toda bem refendida.
O engenho da madeira
melhor não podia estar,
que até os bois de assento
pedras levam ao seu lugar.
Estas pedras, em que falo,
e em que falei ao depois,
por algumas vi puxar
cento e cinquenta bois.
Parecia esta altura
querer subir ao Planeta,
e não se ouviam palavras
sem vozes de uma trombeta.
Entrando para a Igreja
um alpendre vi estar;
dilúvio de pedra preta,
e outra como cristal.
Em a porta principal
duas colunas estão,
parecem, enquanto à vista,
não serem feitas por mão.
Têm seus ricos capitéis,
neles não posso falar,
tal é deles o bem feito,
que se não pode explicar.
De uma parte vi um Anjo,
obrado com paciência;
da outra banda vi outro
na mesma correspondência.
Olhando do Norte ao Sul
para o tecto outra vez,
lhe vi, na correspondência,
um rico, e belo Xadrez.
Para falar na Igreja
não me sinto com talento,
esta grande maravilha
quer melhor entendimento.
Por não ser descurioso
do que vi, irei dizendo;
um Senhor Crucificado
me foi logo aparecendo.
Olhei para trás, e vi
sobre a porta principal,
a melhor das esculturas,
que se podem debuxar.
Parte da sua grandeza
eu quero aqui explicar,
pois têm todo o necessário
do grande Pontifical.
Têm um Turíbulo formoso,
e bem feitos castiçais,
têm um Santo Crucifixo,
que como ele não há mais.
Têm uma bacia grave ,
e uma toalha muito fina;
o Hissope da água benta
ao pé está da Caldeirinha.
Mas tudo isto é de pedra,
e nele se vê obrado:
subamos mais para cima
por não darmos tanto enfado.
Levantando os olhos vi
Palmeiras muito floridas;
em cada janela duas
em pedra azul embutidas.
Abaixando os olhos vi
um Xadrez muito ciente,
com muito grandes enleios,
mas tudo correspondente.
No Convento não me meto,
porque não quero ser Frade:
da perfeição dele digo,
que não tem nenhum desaire.
Com as águas finalizo
as Trovas, que aqui escrevo;
digo, são admiráveis,
e dizer mais não me atrevo.
Ao som do meu martelo
tendo o escopolo na mão,
cantei tudo, que aqui vai,
para rir à descrição.
Quintilha
O Vieira foi famoso,
quando em Mafra teve parte,
na máquina glorioso
o celebrou a sua Arte
mais que todos engenhoso.
Quarteto
Nesta obra com mil jeitos
se faziam mil primores:
oficiais tão perfeitos
são dignos de mil louvores.
Redondilhas
Nós havemos de falar
no muito, que aqui nos sobra,
sobre a grandeza da obra,
que tanto tem que contar.
Neste sumptuoso Convento há várias, e magníficas fontes de preclaríssimas águas nascediças, de várias, e muitas qualidades, todas doces, mas com diferentes nascimentos, umas mais temperadas no calor, que outras; porque na fundação do Convento à superfície da terra nascia água em abundância; de sorte, que para poderem fundar a grandeza deste edifício sangraram a terra com admiráveis canos por baixo da superfície em vários lados de todo este edifício, para formarem este majestoso, e nunca visto Convento; porque toda esta singular maravilha tem um Zimbório, que fecha o Cruzeiro da Igreja violentável na sua perspectiva, revestido de muitas, e várias cores de pedras, que lhe faz uma gala, como a Primavera no Verão, com riscas, e admiráveis serventias no grosso de suas paredes, que dá luz ao Cruzeiro, como o Sol ao meio dia. Todo o mais Convento é gravemente fechado de muitas, e singulares abobadas de várias direcções, e circunstâncias nunca imaginadas; porque toda a grandeza deste Convento não se pode explicar. Não há em parte nenhuma madeiras, tudo abóbadas magníficas, e reverentes; só as portas, que fecham esta Clausura, é madeira, tudo o mais é majestoso.
Suposto as suas águas, como todas geralmente saem do mar, por virtude da comunicação da terra se faz doce, segundo a parte da terra, porque passa, e tem diferente qualidade; porque a água, que todo o ano nasce fervendo, é aquela, que nasce em fonte, e ferve ao pé deste Convento, boa, muito salutífera na sua qualidade; a sua origem do nascimento é meia, e quarta, e oitava manilha de água muito bastante, que enche dois tanques, um ao longo do outro vistosos; e a razão desta água ser deste modo, segundo a experiência, é, porque a sua passagem, e veias, por onde corre para os canos, não deixa de ter coisa de enxofre: há um maravilhoso lago de água nascediça dentro da cerca gravemente grande, murado com seus assentos em redondo, para recreação do Convento, com suas majestosas Arcas de água com chaves de bronze, de onde desfecham quando querem, que correm sem violência alguma para o necessário deste edifício.
Nascia outra qualidade de água atrás do Convento quando se fundava, a quem chamavam a Fonte das Almas: era frigidíssima de Verão, e de Inverno. Esta água nasce sempre fria, por razão de seus canos passarem pela segunda região, e princípio da terceira, a qual por ser sumamente fria, como temos dito, faz que a água por ela venha tão fria, que, metendo a mão nela, e por sua muita friura, se não pode sofrer. Esta qualidade de água é prejudicial a beber-se. Esta fonte logo se perdeu com a factura do Convento, e beber-se em todo o tempo, porque decepa entranhas, causa ar, recolhimento de membros, como a experiência o mostra.
[...]
Advertencias aos modernos, Que aprendem os Officios de pedreiro e carpinteiro, Offerecidas ao Senhor S. Joseph, patrono do mesmo officio, Venerado na sua Parochial Igreja desta cidade de Lisboa (Lisboa, diversas edições de 1739, 1748, 1757, 1826). O autor foi Mestre Pedreiro em Lisboa. Ver Ernesto Soares, In Illo Tempore, in O Concelho de Mafra (15 Ago. 1936).